"Sou gêmeo de mim e tudo/ O que sou é/ Distância./ ..."
(Daniel Faria)

.

24 de fev. de 2009

tacos



poema baseado na obra Early Sunday Morning, de Edward Hopper

o colete, a camisa, a gravata
projetam-se sobre os caracteres
miúdos. ele não lê o jornal
fita os títulos dos artigos
como se os devorasse
num silêncio
de muito suor
mas sem faltar à indiferença:
remexe o corpo
puxa as dobras
da camisa, do papel
delicado e encurva
ombros enormes

os dedos da mulher
vez ou outra
em alguma tecla
não tocam, é como se pisassem
as notas
mas sem faltar à indiferença
logo ela abafa o som
exagerado
com remexos no banquinho
desconjuntando ainda mais o corpo
e alisa os amassos
do vestido

ficarão assim
por um bom tempo. e então,
um dos dois
olhará para o relógio de parede
sem faltar à indiferença
já está tarde
seguirão calados, os sapatos
quase sem tocar
os tacos (alguns já estão
meio soltos) até o quarto.

talvez se ouça um boa noite
um tanto quanto pensado
abafado
pelo travesseiro. talvez
a resposta venha
num tom mais natural: boa
noite

e aí
já estarão desculpados
de toda a indiferença


também no blog do Jornal Plástico Bolha

6 comentários:

Lu Paes disse...

Oi, Bruno!
Nossa, lindo esse poema!
Honestamente, seu blog está cada vez melhor!

E, sobre a idéia de deixar coisas no meio de livros, o Lucas (veja no meu blog, e a curiosidade apertar) disse que uma vez encontrou uma carta no meio de um livro. E, desde então, ele mesmo escreve cartas e deixa em livros. Deve ser o máximo isso!
Vou seguir todas as sugestões e espero um dia encontrar algo de alguém em um livro.

^^

Lu Paes disse...

Que legal isso, do Jornal Plástico Bolha!
Espero que você ganhe o desafio!
:D

Lílian Alcântara disse...

É cheguei até a entrar no blog do plástico bolha, como você mesmo indicou, vou pensar se mando e "o que mando"... aliás, ótimo poema...

Vinícius de R. Rodovalho disse...

Interessante as atitudes de cada um dos personagens e a finalidade que pode haver por trás delas. Parece-me uma série de cuidados com o intuito de minimizar a própria presença para o benefício do outro. São dois tímidos, eu diria. Ou dois generosos.

"Mas sem faltar à indiferença." Na minha visão, eis o traço negativo que muitos seres humanos carregam consigo. Pelo menos têm o potencial de serem indiferentes.

Enfim, talvez a visão mais acertada seja a de que reinam as aparências. Se há indiferença em dado momento, mas logo ela é perdoada, talvez a essência não seja tão valorizada assim, como bem sabemos que acontece em nossa espécie.

Ah, perdoe este humilde comentário e o seu pobre autor se este viajou demais e aquele não saiu tão adequado.

Ótimo poema!

Bruno de Abreu disse...

E era exatamente isso que eu queria passar no poema, Vinícius!

Ótima interpretação! hehehe

Obrigado!

Anonymous disse...

Maravilhoso!
Já li este Jornal Plástico Bolha, só escolhe coisas de qualidade.

Aliás, adoro este tipo de escrita. Parece livre... Tão leve que quase voa.

.
.
.

foto de Damien Peyret

arquivo